151. Microcurso de horta

O que dá para aprender sobre horta em um texto? Bastante coisa. Quanto tempo leva para aprender tudo sobre horta? Muito mais do que uma vida inteira. E no meio desse paradoxo do tempo os agricultores há milênios vêm repetindo o ciclo mágico de semear, cuidar, colher, compostar. Aqui vão 10 lições sobre hortas domésticas e hortas comunitárias que podem ser úteis.   

MICROLIÇÃO 1 – SONHAR
A primeira etapa para fazer uma horta é a “fase do sonho”. Vale a pena dar tempo ao tempo. Deixe a sementinha da vontade de ter uma horta, seja em casa ou na praça, criar raízes dentro de você. Passeie pelo bairro, pela varanda ou pelo jardim observando o espaço disponível, a incidência de sol (o ideal é pelo menos 5 horas por dia) e de vento (quanto menos melhor). Converse com os amigos e possíveis parceiros, pesquise sobre o assunto, visite quem já possui uma horta e as hortas comunitárias. Comece logo a fazer compostagem: assim você já vai preparando o adubo enquanto planeja sua lavoura.

MICROLIÇÃO 2 – ONDE PLANTAR?
HORTA DOMÉSTICA – Em qualquer canto que bata sol direto pelo menos 4 horas por dia e, de preferência, não vente muito. Para começar, quanto menor a horta, melhor. Um metro quadrado ou quatro vasos está muito bom. Quando pegar o jeito, você vai expandindo aos poucos a roça. Grandes áreas são trabalhosas e quem está começando precisa aprender a encaixar as atividades de agricultor na rotina diária. Se não tiver acesso ao solo, faça canteiros elevados ou plante em vasos. Um bom tamanho para os vasos é a partir de 30 cm de diâmetro. Os menorzinhos são úteis só para fazer mudas ou cultivar espécies menores, como cebolinha, salsinha e tomilho. Vasos de barro são os melhores.

HORTA COMUNITÁRIA – Pode ser no jardim do condomínio, na escola, na empresa, na igreja ou na praça. Em São Paulo não há uma lei proibindo as hortas em praça, mas ainda não existe regulamentação para a atividade. Procure locais ensolarados, sem vento e longe de pontos muito carregados de tráfego (por causa da poluição).  Certifique-se de que o solo não está contaminado (tema da próxima Microlição). Vá conversando com os vizinhos porque é fundamental a comunidade apoiar a horta. E procure o Conselho de Meio Ambiente (CADES) da subprefeitura. Fazer amizade com os trabalhadores da prefeitura que fazem a manutenção das áreas verdes do bairro também ajuda muito.

MICROLIÇÃO 3 – NA CIDADE NÃO É TUDO CONTAMINADO?
Não, nem tudo. E o campo também tem bastante contaminação hoje em dia. O assunto é complexo e vou tentar explicar um pouco resumidamente. No dia do Festival podemos aprofundar o debate. E quem tiver conhecimento na área, por favor compartilhe. Seja horta em casa ou no espaço público, os cuidados são semelhantes:

POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA – Evitar regiões industriais e locais próximos a grandes avenidas e aeroportos. Se não for possível encontrar um lugar com boa qualidade do ar, colocar sempre barreira verde (árvores ou arbustos altos) entre a fonte de poluição de suas plantas. Prefira consumir as folhas e frutos jovens, que ficaram menos expostos. Mas não adianta ficar muito neurótico com isso porque suas plantas estão absorvendo o mesmo ar que você. O problema não é a horta: é o excesso de veículos e as outras fontes de poluição. Melhor comer seus vegetais cultivados na cidade do que não comer vegetais. E não há garantia de que os alimentos vendidos em supermercados e feiras estejam livres da poluição atmosférica (há muito cultivo ao lado de rodovias lotadas de caminhões, por exemplo).

CONTAMINAÇÃO DO SOLO – Pesquise no site da Cetesb se o local está na lista das áreas contaminadas (http://areascontaminadas.cetesb.sp.gov.br/relacao-de-areas-contaminadas/). Verifique se não há postos de gasolina num raio de 500m. Saiba se no terreno já houve indústria, posto de gasolina, depósito de lixo, oficina mecânica. Verifique se há infiltração de esgoto no terreno. Se deu positivo em algum dos itens anteriores, provavelmente o solo está contaminado. Se nada disso faz parte da história do terreno, provavelmente está OK para plantar (certeza só fazendo análise em laboratório). Se houver dúvida, não plante com a terra do local. Faça canteiro elevado e bem isolado (com alvernaria) do solo. Ou plante em vasos.

CONTAMINAÇÃO DA ÁGUA – Só regue com água cuja procedência você conhece e confia. Se for água do abastecimento (Sabesp) está OK. Se for água coletada da chuva, que a cisterna tenha filtro e seja feita com todas as precauções necessárias, inclusive contra criadouro de Aedes (dicas aqui: www.cisternaja.com). Se no local tem nascente ou poço, cheque todos os itens da contaminação do solo. Se falhar em algum aspecto, não use a água de jeito nenhum. Se estiver tudo OK, faça análise química e de coliformes antes de começar a usar na rega.

MICROLIÇÃO 4 – COMO PREPARAR O PLANTIO
SOLO – Planeje o desenho do seu canteiro, que pode ser retangular, em formato de fechadura, em espiral ou ter formas irregulares. Se for plantar no chão, delimite o local e vá cavando e quebrando a terra para retirar raízes, grama, pedrinhas. O ideal é aprofundar o buraco uns 40 centímetros. Depois de cavar, se possível peneire a terra retirada. Isole o canteiro do restante do terreno para evitar a volta da grama (tábuas velhas são ótimas para isso). Misture à terra peneirada composto orgânico, esterco e/ou húmus de minhoca (olha só a importância do minhocário doméstico!). Pó de osso também é muito bom (fonte de fósforo), assim como cinzas (potássio). Faça o monte de terra chegar a uns 20 cm de altura. Depois de montado o canteiro, nunca mais pise na terra. Por isso a largura máxima deve ser 1,20m. Se for possível acessá-lo apenas por um dos lados, reduza para uma medida que você alcance confortavelmente sem pisar. Cubra o canteiro com uma camada de mais de 10 cm de espessura de material seco (palha, folhas ou podas de grama). Para colocar as mudas, basta abrir a terra com as mãos. Essa orientação serve para áreas pequenas e para solos degradados. Se você tem um sítio inteiro para plantar, não é possível revolver e substituir a terra. Aí o caminho é a recuperação de solos degradados, o que é uma outra história e leva alguns anos. E se você vai plantar num local onde a terra já está superfértil, soltinha, cheia de nutrientes e de vida, sua vida está fácil (mas em geral isso não acontece).

COMO MONTAR O VASO
Camada 1 – Coloque no fundo 2 cm de argila expandida, cacos de telha ou pedaços de louça quebrada (com a parte convexa para cima). Em vasos grandes essa camada pode chegar a 10 cm. Preste atenção para não vedar totalmente os furos, pois um bom escoamento de água é fundamental. Ah, todo recipiente usado para o plantio precisa ter furos no fundo, se não a água fica parada e as raízes apodrecem. Para economizar espaço, eu dispenso essa camada nos vasos pequenos e vou direto para a próxima: o tecido.
Camada 2 – Em cima dos cacos, tecido de algodão (trapos). Evite a manta drenante vendida em lojas de jardinagem, que é feita de plástico reciclado e com o tempo entope. Já o algodão é muito melhor para essa função porque se decompõe e vira alimento para a planta. Uso minhas roupas até quase rasgarem e aí elas viram tecido de forração de vasos.
Camada 3 – Complete o vaso com terra adubada, deixando uma faixa superior livre, onde vai a cobertura de solo. Nos vasos maiores coloque uma camada de cerca de 5 cm de palha, serragem ou folhas bem secas. Nos vasos pequenos uns 2 cm bastam.

MICROLIÇÃO 5 – COMO PREPARAR A TERRA E ADUBAR
Esse é o segredo e a parte mais difícil do plantio. Verificar quantas horas de sol tem no local diariamente é fácil. Acertar a mão para não deixar a terra muito seca ou muito encharcada também não é muito complicado. Proteger do vento excessivo idem. Mas descobrir os segredos da composição do solo para o bom rendimento das plantas demora a vida inteira.

Não existe uma só receita. Mais ou menos como tempero de feijão, cada um faz de um jeito, mas dá para perceber quando está certo e quando deu errado. E para complicar cada planta é de um jeito: as necessidades nutricionais variam bem.

Eu me sinto um pouco cara-de-pau dando essa lição porque ainda não domino completamente as técnicas de adubação. Mas vou compartilhar algumas dicas básicas que já conseguir captar e seguimos em frente aprendendo juntos.

1 – O primeiro passo para aumentar a fertilidade do solo é incorporar matéria orgânica. Se a terra do seu quintal está dura e sem vida, comece jogando um monte de palha em cima (camada de 30 cm mais ou menos) e deixe lá um tempo. Isso já é meio caminho andado. Se aparecer minhoca, comemore. Se aparecer formiga, agradeça (as formigas são espécies colonizadoras, que ajudam a recuperar solos degradados).

2 – Se você vai plantar em vasos, a receitinha básica é: 40% de terra (qualquer terra), 30 % de areia, 30% de composto orgânico.

3 – Os macronutrientes das plantas são nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K). N você encontra nos estercos, húmus de minhoca, borra de café (mas como a borra acidifica, melhor compostar antes). O P é abundante na farinha de osso que as lojas de jardinagem vendem. E o K aparece bastante nas cinzas de madeira. Mas não pode vir misturado com sal e gordura de churrasco. Então, se tem uma pizzaria perto da sua casa, peça para doarem para você. Sobre as quantidades, não sei dar uma fórmula, mas é decrescente. Mais N do que P, mais P do que K.

4 – Não use adubação química. Se você vai cultivar de forma orgânica, fique longe dos produtos das lojas de jardinagem que têm letras e número (tipo NPK 10 -10-10). Fique com os insumos que têm nomes de coisas da natureza: esterco, húmus, farinha de osso, casca de ovo, borra de café, cinzas. E, principalmente, faça compostagem em casa! O adubo químico solúvel é o fast-food da planta. Faz crescer e engordar, mas deixa suscetível a doenças.

5 – Observe as plantas que nascem espontaneamente. Elas são indicadoras das condições e necessidades do solo. Dá uma olhada nesse post do querido Gui Reis. http://www.matosdecomer.com.br/2015/08/as-plantas-bioindicadoras-nao-e-tudo.html. Pois eu estou nessa lição. Com os macronutrientes já aprendi a lidar mais ou menos. Para incorporar os micronutrientes aos meus vasos e canteiros estou tendo certa dificuldade e aceito dicas.

MICROLIÇÃO 6 – O QUE PLANTAR?
Isso depende do que você gosta de comer, da época do ano, do espaço disponível, da intensidade da insolação, do acaso (às vezes vc se apaixona por uma planta ou ganha mudas e sementes de amigos). O melhor é usar sementes orgânicas, mas elas são difíceis de encontrar. Por isso, frequentar encontros de trocas é importantíssimo e no Festival haverá essa oportunidade! J Se não tiver sementes orgânicas, fique com as normais, que são vendidas em saquinhos em lojas de jardinagem. Só fuja das transgênicas. Ou seja, grãos milho e soja, se não forem comprovadamente orgânicos, não plante! Na embalagem estão informações sobre período e forma de plantio e espaçamento das mudas.

Uma boa opção é começar a horta pelas ervas: manjericão, salsinha, cebolinha, alecrim, orégano, tomilho. Você conseguirá colher todos os dias e ainda assim as plantas continuarão crescendo. As hortaliças são mais trabalhosas, demoram a dar frutos e em uma salada às vezes você acaba com a safra, o que pode desanimar.

Antes de colocar a mão na massa, a horta dos meus planos tinha sobretudo alface, tomate e cenoura. Três espécies das mais difíceis para cultivar, descobri depois, e que até agora não consigo produzir com regularidade. Eu nem sonhava com almeirão, taioba, bertalha, caruru, ora-pro-nobis, escarola, capuchinha e outras PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais). Hoje é essa turma, junto com manjericão, couve, capim santo e pimentão, que se tornou abundante no meu quintal.

Às vezes dá a impressão de que certas plantas escolhem a gente e aparecem em profusão, sem serem chamadas. Aproveite a fartura e partilhe os excedentes com amigos e vizinhos. Outras espécies a gente semeia mil vezes, cerca de cuidados e não vão muito bem. Tem a ver com as particularidades climáticas, do solo e outros mistérios que aos poucos vamos desvendando.

MICROLIÇÃO 7 – MUDAS & SEMENTES
Tecnicamente é possível fazer uma horta em casa ou comunitária comprando sempre as mudas e o adubo prontos em lojas de jardinagem. Só que essa não é a experiência completa. Agricultura de verdade é reconexão com o ciclo da vida em todas as suas formas e todas as suas fases, da germinação à decomposição. Também é busca da autonomia, das relações horizontais, de refazer as redes de trocas de sementes e conhecimentos. Na escala doméstica é contrapor-se a um sistema que quer transformar absolutamente tudo em mercadoria e que busca submeter cada pequeno detalhe das vidas de todos nós ao poder do dinheiro.

Germinar as sementes, produzir as mudas e preparar seu próprio composto são partes importantes do processo. Tudo bem comprar adubo pronto de vez em quando ou até as mudinhas que são vendidas no supermercado. Mas vale a pena mergulhar na experiência de aprender a criar vida desde o começo e buscar conexões entre as pessoas e entre as hortas. Você se tornará um guardião da biodiversidade, alguém que vai receber e doar sementes e mudas de espécies que muitas vezes já não existem mais nos supermercados e feiras comuns. Olha só a importância disso!

A sementeira é uma bandeja cheia de casulos, própria para semear (veja a foto). Mas você pode fazer a germinação de copinhos de café, latas ou qualquer outro recipiente pequeno e furado. Misture terra “comum” com composto e passe na peneira para ficar bem fofinho. Aí é só iniciar suas experiências com germinação e trocar ideias com a tribo dos plantadores. O grupo Hortelões Urbanos é ótimo para isso: https://www.facebook.com/groups/horteloes/.

A sementeira é um berçário muito delicado. Precisa ficar abrigado do excesso de sol, de vento e das chuvas fortes. O ideal é construir um estufinha, mas varandas de apartamento e beirais de janelas bem iluminadas também funcionam bem. Não está fácil encontrar sementes orgânicas, então conte com a rede de trocas entre os plantadores. A Daniela Pastanafaz um trabalho lindo na articulação desses grupos. Também dá para comprar pela internet na Bionatur (http://biodinamica.org.br/sementes-bionatur). E aqui em São Paulo tem um lugar incrível para conseguir mudas de centenas de tipos de ervas: a Sabor de Fazenda (http://www.sabordefazenda.com.br/), das queridas Silvia e Sabrina Jeha. Vale o passeio.

MICROLIÇÃO 8 – CUIDADOS DIÁRIOS. E NÃO SE PREOCUPE, VOCÊ VAI ERRAR
Ter uma horta é como ter filho pequeno ou animal de estimação. Você se tornar responsável por cuidados frequentes e imprescindíveis. Se for viajar, terá que arranjar alguém para cuidar diariamente da sua horta. Seja ela no seu quintal ou um projeto comunitário na praça.  Então pense bem nisso antes de embarcar na aventura. Se você é do tipo ultraviajante ou tem uma rotina maluca sem tempo livre, pense em oferecer ajuda a uma horta que já existe. Num verãozão, por exemplo, se você não cuidar sobretudo das mudas pequenininhas por apenas um dia, é provável que aconteça uma mortandade que vai desperdiçar meses do seu trabalho. Então vamos à dicas:

  • Regar demais é tão ruim quanto deixar as plantas secarem. Use o “dedômetro” para aferir a umidade ideal. É assim: você enfia o dedo bem fundo na terra e verifica se está úmida e grudando. Se estiver bem molhado, não precisa regar mais. Se estiver úmido, regue pouco. Se estiver seco, regue bastante.
  • Melhores horários para regar e manejar as plantas: início da manhã ou final da tarde. Prefira os dias nublados e mais frescos para transplantar.
  • A terra deve estar sempre fofíssima como um bolo. Se ficar endurecida, deve estar faltando matéria orgânica, cobertura de palha, água ou tudo isso.
  • Algumas plantas são perenes ou vivem durante várias safras, como é o caso das ervas. Outras têm apenas uma colheita, como o tomate e a alface. Misture esses dois tipos para sempre ter uma horta viva.
  • Enquanto uma safra de folhosas cresce, vá preparando a próxima na sementeira.
  • Quanto mais biodiversidade, melhor. Troque mudas com amigos hortelões, arranje sementes diferentes e vá trazendo novas espécies.
  • Na agroecologia não se fala em ervas daninhas e sim em espécies espontâneas. São os matinhos que crescem sem ser semeados. Não precisa exterminar. Se não estiverem alastrando demais ou atrapalhando o desenvolvimento da planta comestível, deixe lá. Observe o que elas dizem sobre o seu solo. Aqui vai de novo a dica do post do Guilherme que coloquei na microlição 5: http://www.matosdecomer.com.br/2015/08/as-plantas-bioindicadoras-nao-e-tudo.html.
  • O biofertilizante (chorume) do minhocário diluído em água é um excelente adubo para borrifar nas folhas.
  • A cada mês ou quando sentir que a planta está precisando, adube a terra. Mas sem exagero.
  • Contemple todas as etapas da vida: nascimento, crescimento, frutificação, morte e decomposição. Cada uma tem seu encanto.
  • O verão tropical escaldante e sujeito a tempestades é um período complicado para as plantas. Paciência e atenção redobrada nessa época. Se na hora mais quente do dia as plantas murcharem e se contorcerem, respire fundo e aguente. Não é hora de regar. Muitas vezes isso acontece mesmo com a terra bem molhada. Sua planta está tentando se defender da alta temperatura e provavelmente voltará ao normal no fim da tarde. Se a onda de calor dura muitos dias, algumas plantas morrem. O mesmo acontece com as ondas de frio. Vá observando quais são as espécies mais resistentes ao stress climático. Conhecimento fundamental daqui para frente.

Fique tranquilo: você vai errar. Vai errar muito e vai errar muitas vezes. Por falta de experiência, distração, problemas climáticos ou outras razões. Faz parte do processo. Ter uma horta é uma excelente oportunidade de treinar a resiliência, a humildade, a aceitação de que somos falíveis e nem tudo acontece de acordo com a nossa vontade. E se você acertou de primeira, provavelmente não sabe muito bem por quê. Então nas próximas provavelmente vai errar. Só não existe essa história de “não ter mão” para planta. Assim como a culinária, o plantio exige prática e experiência. É fazendo e refazendo mil vezes o ciclo semear, adubar, cuidar, colher e compostar que a gente vai aprendendo “o ponto” de cada etapa.

MICROLIÇÃO 9 – AS ‘PRAGAS’. OU MELHOR, OS SÓCIOS.
Para começar, não existe praga. Nenhum ser vivo desse planeta pode ser considerado uma praga, embora sob certo ponto de vista quem mais mereça o título seja o homo sapiens. Mas desequilíbrios populacionais acontecem. Vamos então chamar o que acontece nas nossas hortas de “proliferações”, que podem ser tanto vegetais quanto animais.

MATOS, MATINHOS E MATÕES – Não se surpreenda se, ao plantar sua muda de alface, outras espécies invadam o canteiro. Tanto a alface quanto as demais hortaliças mais comuns no supermercado são, como diria o permacultor Peter Webb, mimadas. Em geral trata-se de plantas não nativas do Brasil e, portanto, menos adaptadas ao nosso clima e às características do nosso solo. Aprender a comer taioba, caruru, bertalha e outras PANCs (Plantas Alimentícias não Convencionais) faz parte do processo de virar um hortelão.

Aquele visual “pelado” da agricultura convencional não faz bem para o solo, que precisa estar sempre coberto. Então deixe vir os matinhos, aprenda quais podem ser degustados e vai protegendo com carinho as suas plantinhas mais frágeis, o que significa retirar delicadamente quem está querendo sufocar a sua alface, por exemplo. Outra desvantagem do excesso de capina é não deixar alimento para os bichinhos da horta nem esconderijo para os predadores dos bichinhos da horta. Se no canteiro só tiver a sua comida, será o único alimento disponível para os outros seres e aí eles vão atacar mesmo.  Agradeça os matinhos que aparecerem, pois eles inclusive contam como está o solo (de novo, indico o post do Guilherme Reis- http://www.matosdecomer.com.br/2015/08/as-plantas-bioindicadoras-nao-e-tudo.html).

OS BICHOS – Horta saudável é horta cheia de bichinhos. Abelhas polinizam, joaninhas comem pulgões, lagartas serão borboletas, as vespas (carnívoras) ajudam a controlar populações. Formigas em geral são injustiçadas: espécies pioneiras, proliferam em solos degradados e ajudam a incorporar matéria orgânica. Se tem formiga comendo suas plantas, experimente colocar um monte de palha sobre a terra. Elas vão ficar ali felizes nas áreas menos férteis do solo, trabalhando compenetradas para o bem do território. Aranhas, sapos e morcegos mostram a vitalidade do ecossisteminha. Dê boas vindas se aparecerem.

Proliferações de bichinhos acontecem mais nos primeiros tempos da horta, quando há pouca biodiversidade vegetal e animal. Tenha paciência, permitas os matinhos crescerem, plante flores (para atrair bichinhos do bem) e incorpore muita folha seca na cobertura do solo (que deve ter cerca de 7 cm de espessura). Qualquer inseticida é péssimo. Aliás, qualquer produto terminado em “cida” não é para usar, o que inclui fungicida, nematicida etc. Cida — sufixo originário do latim, caedere — significa matar. E a horta agroecológica precisa ser cheia de vida. Ah, o tal neem também está nessa classificação. Eu não uso de jeito nenhum.

DOENÇAS – Às vezes o problema não é nem mato nem bicho. São manchas nas folhas, podridões etc. Pode ser fungo, bactéria, vírus, sei lá. Disso não entendo nada. Se minhas plantas adoecem procuro  entender o que está errado no manejo para tentar acertar na próxima. Se o solo está fértil e equilibrado, a luminosidade, temperatura e quantidade de águas estão adequados, em geral as plantas são saudáveis.

MICROLIÇÃO 10 – COMO AJUDAR NUMA HORTA
Esse é o último post do microcurso. Como deu para ver nos outros 9, cuidar de horta é maravilhoso mas dá um trabalhão. Sempre estamos precisando de ajuda. Felizmente sempre há pessoas bem-intencionadas, mas nem sempre a ajuda é aquilo que precisamos. Então fiz essas duas listinhas simplificadoras baseadas unicamente nas minhas vivências e com tendência de dar polêmica. Peço licença para usar uma linguagem tão direta (assim o texto fica curto) e deixo cada item em aberto para discussão.

O QUE FAZER
– Oferecer insumos: composto, biofertilizante, esterco, mudas, bambus para fazer estacas, sementes, folhas secas, serragem, cinzas, casca de ovos, pó de café, ferramentas, carona para buscar insumos em algum lugar. Mas conte o que pretende doar e veja se aquele item realmente é necessário. Em caso afirmativo, veja se consegue se tornar um fornecedor frequente do item.
– Perguntar: do que vocês estão precisando? E tentar oferecer. Tem serviço para todo tipo de talento. Sempre é preciso fazer placas de identificação e contribuições para o lanche são muito bem-vindas, por exemplo.
– Serviço braçal. Carregar sacos de insumos. Capinar. Podar. Rachar lenha. Manejar a composteira.
– Ajudar a regar. Na época da seca e nos dias de calorão, dependendo do tamanho da horta a rega é uma tarefa bem extensa. Seja em casa ou na praça, pergunte ao cuidador mais experiente quando, quanto e de que modo regar. Cada pessoa tem suas manias, cada planta também. Várias não gostam de água nas folhas, tem as mais sedentas e as que preferem solo mais seco e por aí vai.
– Ser o cuidador da horta no caso de viagem dos que trabalham nela diariamente.
– Perceba que na primeira vez que você vai ajudar seja lá em que tarefa for, você estará solicitando diversas explicações e a atenção do cuidador da horta. Se for algo que você fará apenas uma vez na vida e nunca mais, talvez seja melhor apenas ficar papeando e observando. A menos que o hortelão insista bastante para você participar.
– Colher. Se o cuidador da horta está oferecendo as plantas, aproveite. Nós gostamos muito de repartir o que cultivamos. Mas pergunte como, quanto e quais plantas podem ser colhidas.

O QUE NÃO FAZER
(Antecipadamente peço desculpas se os comentários abaixo soarem antipáticos. Mas são situações frequentes, que tornam mais difícil a vida do hortelão doméstico ou dos voluntários de hortas comunitárias).
– Começar a remodelar canteiros e arrancar “mato” sem antes conversar com quem cuida da horta no dia-a-dia. Existem muitas PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais) e muitas histórias de canteiros de PANCs que foram dependados porque alguém chegou e resolveu “limpar”.
– Encontrar uma pessoa dando duro na horta e, sem oferecer ajuda, reclamar que os canteiros estão feios, mal cuidados, que tal e tal tarefa deveria ser feita de outra forma. Em geral, sempre faltam braços e sobram palpites nas hortas.
– Encontrar uma pessoa dando duro na horta, não oferecer ajuda e dar explicações sem fim sobre os motivos pelos quais você não participa, contando detalhadamente seus projetos profissionais, problemas pessoais, de saúde e familiares.
– Oferecer seu quintal, outra praça ou seu sítio para o pessoal da horta ir lá plantar, sendo que você não tem intenção de participar. Em geral, o que falta para a expansão da agricultura urbana é mão de obra. Oferecimentos de novos locais para implantação de hortas são bastante frequentes, mas as que já existem têm déficit de voluntários.
– Antes de sugerir embelezamentos, leve em conta que a estética da agroecologia é diferente daquilo que as pessoas costumam identificar como uma horta bonita (canteiros com um único tipo de hortaliça organizado em fileiras e sem nenhum matinho em volta).
– Largar pneus (contaminam o solo), entulho, fórmica (tem muito produto químico e não serve para delimitar canteiros) e outros materiais na horta. Madeira e telhas às vezes são úteis, mas lembre-se que apenas ao largar lá você está dando trabalho extra para os voluntários, que terão que prover um destino ao material. Pergunte antes se o que você tem para doar será útil e participe do trabalho que reutilizará o material.
– Dar uma ideia de alguma melhoria bem trabalhosa que deve ser feita, mas de cuja implantação você não tem interesse em participar.
– Dizer que pretende se tornar voluntário, fazer um milhão de perguntas, solicitar materiais, mais dicas, livros e nunca mais aparecer.
– Adotar um canteiro, ir na horta duas ou três vezes, abandonar o canteiro e não avisar ninguém.
– Dizer para as crianças não se sujarem de terra. É para sujar!
– Roubar mudas, ferramentas e retirar insumos da horta comunitária, sem oferecer nada a ela. Nem material nem trabalho.

Reparou que não comentei o item plantar uma muda? É que o momento do plantio equivale a 0,0001% das atividades na horta. É um instante mágico, mas apenas um instante. O que dá trabalho mesmo é conseguir os insumos, preparar os canteiros e cuidar das plantas por toda a vida delas.

 

One thought on “151. Microcurso de horta

  1. Ficou muito o texto, Claudia!

    Como falei noutro dia, estoua cinco anos plantando hortas e comecei a reparar que existe uma intensa proliferação de microrganismos no solo do entorno de bananeiras. Ao usar folhas de bananeiras como cobertura percebi que elas são muito resistentes à decomposição, fato que talvez explique o porquê da existência de tantos microrganismos onde tem bananeira plantada. Nos testes que fiz aqui colocava material orgânico para compostar à sombra delas e percebi que a coisa ia muito mais rápido que nas leiras mais distantes. Esses microrganismos são excelentes para melhorar a qualidade do solo.

    Quero deixar aqui uma outra dica: para distrair as formigas basta espalhr pela superfície do solo algumas cascas de laranja ou tangerina. As formigas adoram e deixam as plantas em paz.

    Grande abraço!

  2. Excelente Microcurso da amiga Claudia Visoni. Vale muito a pena dedicar uns minutinhos para essa leitura e entender que “errar” é mais do que normal, mas agora com toda essa sabedoria adquirida na prática e repassada para nós, podemos entender de vez que uma horta caseira não é para ser comparada com a banca do supermercado ou as feiras dos mercadões e sacolões expondo legumes e verduras gigantes, porém com alto índice de agrotóxicos e sabe-se lá o que. Em uma horta orgânica caseira as verduras e legumes são pequenos, mas com alto valor nutritivo. Compare o sabor e logo entenderá a diferença. Parabéns Claudia, e obrigado por compartilhar sua experiencia.

    1. Obrigada pelas palavras carinhosas Edison. Vc tem razão: esqueci de falar da aparência das hortaliças que cultivamos em casa. Não só as espécies são diferentes das do supermercado como também os tomates e alfaces que cultivamos são menorzinhos e gostosíssimos.

  3. Olá Cláudia, primeiro parabéns pelas iniciativas e muito obrigado por compartilhar seu conhecimento. Sou entusiasta da área e tenho uma horta pequena em casa e tenho um projeto audiovisual chamado Orgânico Simples que é um canal no YouTube onde teremos matérias falando muita coisa sobre alimentos orgânicos, porque consumir, hortas urbanas, sistemas de.plantio, dicas, receitas e muito mais. Por conta do projeto estou estudando muita coisa e referente a uma coisa que você comentou sobre aprofundar o solo uns 40 cm no livro Pergunte ao Solo e as Raízes da Ana Primavesi ela comenta que em solo tropical que é o nosso tipo de solo não se deve revirar a terra por mais de 15cm pois os nutrientes estão mais na parte se cima do solo diferente dos solos temperados onde os nutrientes ficam mais fundos porque os solos congelam, lá sim é preciso revirar maia profundamente mas aqui em solo tropical não, porque ao fazermos isso após duas horas será liberado gás carbônico que é mais poluente do que os carros. Então aqui se revira pouco os solos, fui em alguns produtores e vi máquinas bem pequenas e que reviram em pouca profundidade a terra, só uma informação ok não tenho intenção de dar pitaco…rs…quero muito aprender pro meu projeto é pra minha vida e compartilhar conhecimento, bjs e parabéns mais uma vez pelo trabalho.

    1. Oi Marcio, obrigada pelas palavras carinhosas e pelo comentário. Você tem razão. Estou lendo “A cartilha do solo” da Ana Primavesi e realmente revolver o solo profundamente não é recomendado. Acrescentei uma observação no post e veja se está de acordo. Abs!
      “Essa orientação serve para áreas pequenas e para solos degradados. Se você tem um sítio inteiro para plantar, não é possível revolver e substituir a terra. Aí o caminho é a recuperação de solos degradados, o que é uma outra história e leva alguns anos. E se você vai plantar num local onde a terra já está superfértil, soltinha, cheia de nutrientes e de vida, sua vida está fácil (mas em geral isso não acontece). “

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