1. Pensamentos no varal

Além de ser ruim para o meio ambiente, essa história de comprar roupa demais e descartar as peças facilmente é pouco ética.

Até a semana passada eu me achava razoavelmente ecológica e não muito consumista. Aí fiz uma arrumação no armário e descobri que possuo:

  • 110 peças para meu próprio hemisfério norte (incluindo camisas de trabalho, blusas de manga longa, de alcinha, de festa, de ficar em casa e as camisetas fuleiras para fazer esporte);
  • 29 calças;
  • 6 saias e 1 vestido;
  • 17 bermudas;
  • 45 sapatos;
  • 24 malhas de lã e 6 blazers (que odeio usar);
  • 25 bolsas, mochilas & cia.

Apenas um corpo e 258 peças de roupas. Isso sem contabilizar as que se encontravam na longa jornada que vai do cesto de roupa suja ao armário novamente. Lembra da frase mais famosa do Pequeno Príncipe (“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”)? Pois é exatamente assim que me sinto em relação a essa montanha de tecido, couro, borracha e metal. Fui eu que escolhi, paguei, levei para casa, uso, mando lavar e, às vezes, ajustar. Na hora da despedida, ainda tenho que encontrar um fim digno para algo que compartilhou minha intimidade por um bom tempo. Uma amiga, prática, sugeriu: “Para quê se preocupar com isso? É só doar as roupas”. Acontece que tenho um certo pudor de passar para outro ser humano itens que, como já disse, são íntimos. Sentimento compartilhado muitas vezes com quem recebe a doação. As pessoas de menor poder aquisitivo também preferem o ritual do consumo (mesmo que seja na barraca do camelô em frente ao terminal de ônibus) ao do reaproveitamento. Imagino que, comparando vestido que compraram por R$ 15 ao cocktail dress de grife que a madame passa em frente para liberar o cabide e ir de novo à compras, o primeiro ganha de mil a zero.

Há algum tempo, me enchi de constrangimento ao encontrar no lixo da minha casa todas as roupas que tinha acabado de doar para a faxineira nova. E outro dia, andando na rua, encontrei uma família de pedintes perto de um farol ao lado de uma pilha de roupas pisoteadas. Eram camisas sociais de executivo, uniformes de escola particular e mais diversos itens que não condiziam com o estilo skatista do pessoal, que, aliás, tinha um senso estético bem apurado.  Deduzi que as doações recém-recebidas não agradaram e iam ficar por ali mesmo. Até minha prática amiga concordou, pois faz trabalho social numa favela e cansa de ver cenas semelhantes. Foi quando um arrepio percorreu minha espinha e lembrei de uma reportagem que li logo após o tsunami. Era sobre as organizações humanitárias internacionais que pediam às pessoas do “primeiro mundo” que parassem de enviar roupas para os países asiáticos afetados pela tragédia. Argumentavam que — além das vítimas estarem precisando mesmo de água, alimentos e remédios — aquelas roupas eram totalmente inadequadas à cultura da região.

Então é isso: a nossa “bondade” em doar roupas para os mais necessitados muitas vezes não passa de uma maneira de dar vazão aos desejos consumistas com menos culpa. Hoje em dia prefiro as doações de roupas de crianças e adultos entre amigos, como uma forma de aproximação e de compartilhar histórias, do que esses atos beneficentes.

Pensar nisso tudo está me deixando longe de lojas, vitrines e até de anúncios de roupa. Já as revistas de moda eu adoro e leio cada vez mais. Tenho percebido, inclusive, que quanto mais me informo sobre o assunto, menos vontade tenho de ir às compras. Aos 42 anos, tenho um closet que parece uma espécie de brechó particular, reunindo meus itens preferidos dos últimos 15 anos pelo menos. Todos eles testados e aprovados em relação às formas e proporções do meu corpo. Assim, para garimpar um new look é só estar por dentro das tendências da estação, que, por sinal, são sempre mais ou menos as mesmas: 60’s, 70’s, 80’s, dark, punk, floral (argh!), esporte (oba!), militar, listas, estampas de animal, futurismo e mais uma meia dúzia de termos.

A calça skinny, por exemplo, ressurgiu faz um tempinho. Aí levei dois jeans retos à costureira, que os transmutou na última moda com maestria. Saí de lá com calças justas, bem parecidas com as que eu usava na adolescência. Aliás, lembro que a gente se orgulhava de ter aquele jeans supervelho e naturalmente desbotado por centenas de lavagens. Quando a tal calça rasgava de tanto uso, era uma vitória, mas nesse momento as mães começavam a perseguição implacável, geralmente culminando com o seqüestro da tão querida companheira de aventuras, sem possibilidade de resgate. Na minha casa, algumas vezes a falecida ressuscitava na forma de tapetinho de cozinha patchwork. Não consigo pensar em nada mais sustentável, para usar uma palavra da moda. Só que, antigamente, isso era apenas o jeito classe média de economizar dinheiro…

Muitas das tais tendências de moda que vêm e vão eu ignoro completamente porque nada têm a ver comigo. Mas em outras pessoas posso achar bonito. Apenas uma delas me causa mal-estar só de ver: a das roupas com cara de velhas. Como vivemos na sociedade do hiperconsumo e da hipervelocidade, ninguém mais tem perseverança para usar as próprias roupas até que adquiram aquele charmoso estilo “pano gasto”. Então a indústria da moda resolve isso para nós colocando operários e máquinas para desgastar os tecidos com fricção e ácidos de modo que cheguem aos consumidores um tanto puídos e manchados. Mais de uma vez já saí de lojas descoladas com um nó na garganta depois tocar uma peça assim. Lembrei de todas as gerações de seres humanos, com fartos exemplos na literatura, que tinham apenas uma ou duas roupas para vestir e que, sendo trabalhadores braçais, se esforçavam para preservá-las ao máximo porque tinham vergonha de serem vistos usando peças esfoladas.

Por falar em vergonha, o que dizer das 258 peças de roupa que moram no meu guarda-roupas?

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