150. Comida de verdade até para o Nino

Esse é o Nino. E eu sou a cozinheira dele.

Evito ao máximo os alimentos industrializados, mas até pouco tempo atrás o Nino comia ração. Na verdade, ele passou os 11 primeiros anos de sua vida se alimentando praticamente só de ração. Eu, ativista da comida de verdade, não estava dando conta de cozinhar para a família humana e também para o filho-cachorro. E, bastante culpada, alimentava o Nino com ração “de boa qualidade” (aquela mais cara). Dizia a mim mesma para não ficar tão perfeccionista e sobrecarregada, afinal sou a agricultora, cozinheira, jardineira e lavadeira da minha casa, além de fazer mil outras coisa na vida. Até que fui obrigada a assumir a milésima primeira tarefa cotidiana: cozinhar para o cão.

Isso aconteceu porque, de repente, Nino teve uma diarreia que não ia embora. Na primeira crise, o veterinário medicou com uma injeção “para o fígado” e as coisas se normalizaram. Quando aconteceu de novo, fui para a consulta esperando o mesmo diagnóstico e remédio. Mas o vetê fez cara de desânimo e titubeou quando perguntei a causa. Recomendou um remédio humano para gases, sem muita convicção. Aí farejei o conflito de interesse: “Ele não pode falar mal de ração!”, pensei. Voltei para casa, não dei remédio nenhum e cozinhei um pouco de arroz branco com frango (aquilo que os não-vegetarianos comem quando ficam assim, né?). Em 24hs o problema sumiu. Aí fui estudar o site Cachorro Verde (http://www.cachorroverde.com.br/). A partir desse dia, adeus indústria transgênica da ração.

Isso já faz quase um ano. E o Nino, que vai completar 12 em dezembro, está musculoso e feliz com sua vida de atleta e natureba. Passeia duas vezes por dia, me acompanha correndo em curtos percursos de bicicleta, sobe e desce as escadas centenas de vezes, persegue passarinhos, caça ratos. Depois da mudança, já tentei dar apenas uma refeição de ração: a diarréia volta. Já tentei dar meia refeição de ração misturada com comida de verdade: dá gases. Já tentei colocar umas 7 bolinhas de ração junto com a comida caseira: sem problemas. Então compro um pacotinho de vez em nunca e eventualmente adiciono doses mínimas de ração como uma espécie de momento-junk-food. De resto, sou eu e as panelas.

Das três opções apresentadas pelo Cachorro Verde (dieta natural crua com ossos, sem ossos e dieta cozida), eu e ele nos demos melhor com a terceira. Não vou me atrever a resumir ou dar dicas, pois as orientações são muitas e detalhadas. Se tiver interesse, vai lá: http://www.cachorroverde.com.br/caes/dieta-cozida-para-caes/.

Mesmo usando ingredientes de boa qualidade, o rango caseiro sai bem mais barato do que ração. Olha só:
– Ele come cerca de 250 g por dia e 1 kg de “boa” ração custa cerca de R$ 30. Ou seja, R$ 7,5 por dia.
– Somando os ingredientes (1 kg de arroz integral orgânico quebrado no Instituto Chão está R$ 2, ½ kg de coração de frango sai por menos de R$ 10 e 1 ½ kg de acém moído por R$ 28, os legumes eu colho na horta ou uso as pontinhas e restos dos preparos para as refeições da família humana) são cerca de R$ 40 para duas semanas. Ou seja, menos de R$ 3 por dia.

Mas nem tudo são flores. Tem o trabalho de preparar comida toda semana. Tem a disputa pelo espaço no congelador, já que não possuímos freezer. Tem o trabalho de comprar ingredientes especiais para o Nino. Tem a dificuldade extra, para alguém quase vegetariano como eu, de preparar vísceras, ossos & cia. Principalmente, tem a dor na consciência por comprar pedaços de animais mortos para alimentar meu cão. Incrível o poder alienador da indústria alimentícia: antes de preparar a comida do Nino eu não tinha sentido na pele esse detalhe, embora a divulgação no ano passado das histórias de escravização de pessoas no Oriente para as atividades de pesca da indústria pet tenha me chocado (veja aqui http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/08/1662374-escravos-do-mar-sustentam-industria-de-pescados-usados-em-racoes-animais.shtml). Na época lembro de checar se a antiga ração tinha peixe entre os ingredientes e, se tivesse, teria trocado de marca na hora.

Enquanto cozinho para o Nino vou pensando nas injustiças. Num mundo em que falta comida para os humanos e a produção de carnes é responsável por tanta devastação, estou eu nutrindo o setor pecuário para alimentar meu querido carnívoro. Isso coloca em dúvida a possibilidade de futuros pets por aqui. Só que, enquanto o senhor Nino está firme e forte, vou criando novas receitas para ele e com ele do lado, mesmo que seja de madrugada, como já rolou…

Separando as raspinhas de legumes da refeição humana para colocar na receita canina daqui a pouco
Especial do dia: rabada com beterraba
A carne, crua, entra na hora de preparar as porções de arroz com legumes que serão congeladas
Oba, hoje tem cenoura, couve e beterraba!
Risoto canino de taioba
Arroz integral orgânico quebrado, taioba, cenoura e coração de frango. Tá servido?

92. O verdadeiro Planeta dos Macacos

Humanos e chimpanzés são iguais em quase tudo. Mas enquanto andamos por aí nos achando os donos do mundo, eles sofrem com a destruição de seu habitat, o tráfico,  o aprisionamento em zoológicos e a exploração em espetáculos.

O site do Projeto GAP Internacional (www.projetogap.org.br) divulga  filmes e relatos muito mais interessantes sobre nossos primos. O movimento, que desde 2008 tem sede no Brasil e é presidido pelo microbiologista Pedro Ynetian, tem três santuários (assim são chamados os abrigos) afiliados em cidades do interior de São Paulo e um no Paraná. Fica em Sorocaba o primeiro e o maior deles, que acolhe cerca de 300 bichos, entre eles 53 chimpanzés.

Olhando o DNA, os humanos e seus parentes mais próximos são 99,4% idênticos. Aliás, acabo de aprender dá para fazer transfusões de sangue entre homens e chimpanzés. Lendo sobre algumas particularidades dos hóspedes do Projeto GAP, confirmo que as diferenças psicológicas entre nós e os chimpanzés são bem menores do que gostamos de pensar. Olha só:

  • Sergio gosta de fotografar.
  • A diversão preferida de Emilio é olhar revistas.
  • Jonhy e Billy ficam muito relaxados enquanto têm suas unhas aparadas.
  • Suzy, de quatro meses, dorme num berço decorado com móbile, se alimenta de Nan na mamadeira e, como todos os bebês, adora colo.
  • Jogar bola é um dos passatempos preferidos da maioria e por isso está rolando uma campanha para arrecadar doações desse brinquedo.

Tudo seria muito fofo, caso o Projeto GAP não tivesse surgido para amenizar terríveis agressões que os seres humanos causam aos demais primatas. A primeira delas é continuar destruindo florestas e desalojando as populações animais pelo mundo afora. Os poucos sobreviventes das queimadas e desmatamentos tornam-se homeless. Os outros problemas são o tráfico internacional de animais, os espetáculos e os zoológicos. Pedro é quem explica: “Os truques de circo que os animais fazem são comportamentos antinaturais, obtidos em geral por meio de maus tratos e torturas. Muitos dos bichos que chegam aqui tiveram os dentes arrancados, foram castrados e mutilados de diversas formas. Já os que vieram de zoológicos às vezes estão ainda piores, pois a tortura que sofreram é psicológica. A falta de espaço, estímulo, privacidade e convívio com outros indivíduos da mesma espécie deixa muitos deles irremediavelmente loucos.”

Ainda não existe uma lei que proíba circos com animais em todo o pais – um projeto está tramitando no Governo desde 2006 -, mas 9 estados e mais de 50 cidades brasileiras já têm leis que proíbem animais no picadeiro. Só que muitos ex-artistas sobraram por aí. Hoje são cerca de 150 leões abandonados no país e uns 20 ursos ainda trancafiados, sem ter para onde ir. Dos 111 zoos registrados no território nacional, 77 têm situação irregular. No exterior, o movimento antizoológico começa a ganhar fôlego. Por aqui, a causa ainda é desconhecida e quase não possui adeptos.

Esse é um assunto complicado de abordar, até para uma ecochata como eu. A maioria das pessoas guarda boas recordações infantis de passeios no zoológico e quer passar para os filhos a tradição. Com tanto documentário excelente, acho dispensável e deprê ir visitar animais encarcerados. Essa não é uma opinião racional e sim resultado de um trauma que vivi. Explico: a última vez que apareci no zoo paulistano faz décadas e foi uma experiência radical no pior sentido. Percebi a angústia dos detentos com muita intensidade. Num certo momento, justamente na área dos chimpanzés, entrei em contato visual com um senhor idoso. Durante longos minutos, eu olhava imóvel para os olhos dele e ele para os meus. Eu via depressão, frustração, raiva e desespero por uma vida desperdiçada entre grades e sem privacidade. Entramos numa espécie de sintonia telepática e ele continuava a me encarar. Fiquei péssima e, enquanto tentava segurar o choro, pedia perdão silenciosamente por fazer parte da espécie homo sapiens. Sapiens?

Nunca mais pisei num zoológico. Quando quiseram ir, meus filhos tiveram outros acompanhantes. Conhecer o Projeto GAP e saber que não sou a única a pensar assim trouxe um sentimento de alívio.

Vídeo muito legal do TV Folha sobre a polêmica dos testes científicos com chimpanzés: http://www.youtube.com/watch?v=VcW3NXQdUe8&feature=youtu.bev.

74. Visita às galinhas

Qual a diferença entre o frango e os ovos orgânicos, caipiras, naturais e convencionais? Para descobrir, fui ao interior conhecer de perto as granjas alternativas.

Comecei esse blog há um ano e tem sido uma experiência e tanto. Como os temas dos posts continuam se desenrolando na minha cabeça depois de publicados, decidi escrever um livro para registrar essas reflexões e experiências de uma forma mais profunda e não fragmentada. No livro, que ainda vai demorar para sair, tem um capítulo chamado Comida. Ao editá-lo, percebi que já tinha visitado ou pelo menos conversado com os fornecedores que elegi, tanto de vegetais e laticínios orgânicos quanto de peixes capturados de forma artesanal. Tenho o maior orgulho deles e recomendo mesmo: www.aboaterra.com.br; www.cestaorganica.com.br; www.pescadooriginal.com.br; www.natadaserra.com.br.

Acontece que eu quase nada sabia sobre a vida das aves que vão parar no meu prato, embora há muitos anos tenha deixado de consumir marcas comuns. O frango de casa é Korin e os ovos, Yamaguishi (com o ótimo slogan “Galinhas não são máquinas de botar ovos”) ou Sabor e Cor.

Embora os produtos sejam mais caros, tomei essa atitude sensibilizada pelos alertas que ecologistas e protetores de animais fazem sobre a realidade nada bonita das granjas modernas, que se tornaram fábricas de proteína movidas por uma engrenagem chamada galinha. Para quem se interessa pelo assunto, o documentário Food,Inc e o livro “Comer Carne”, de Jonathan Safran Foer,  mostram como é a produção convencional de ovos e frango. A ONG Peta (People for The Ethical Treatment of Animals) oferece informações valiosas: http://www.peta.org/issues/animals-used-for-food/chicken-industry.aspx.

Um trailer muito resumido da situação: as aves vivem em galpões apinhados (cerca de 14 por metro quadrado) ou, pior ainda, espremidas em gaiolas, sem jamais conhecer a vida ao ar livre. Seus bicos são cortados para que não se matem reciprocamente. Antibióticos e substâncias químicas que aceleram o crescimento são adicionados à ração e à água, trazendo a perspectiva sinistra de forçar a seleção de bactérias super-resistentes. Para estimular a produção de ovos, a luz fica permanentemente acesa. Com cerca de seis semanas, são abatidas. Enfim, as galinhas comuns parecem viver em um campo de concentração nazista.

Mas será que as granjas alternativas são realmente diferentes?

Para descobrir isso, resolvi fazer um Galinha-Tur, que começou em Ipeúna, perto de Rio Claro, sede do setor agropecuário da Korin. Fui muito bem recebida na empresa e conversei bastante com a gerente de qualidade Cecilia Ifuki Mendes, que muito gentilmente me deixou visitar as instalações e até me convidou para o almoço orgânico no refeitório da firma.

O esquema lá é o seguinte: a Korin compra e distribui pintinhos com um dia de vida para cerca de 20 produtores integrados (sitiantes da região), que os criam dentro de galpões. A empresa também fornece uma ração fabricada em suas dependências e mantém veterinários e zootecnistas percorrendo incessantemente as granjas para verificar se as aves estão sendo tratadas de acordo com as diretrizes da AVAL (Associação de Avicultura Alternativa). Com mais ou menos a mesma idade do frango convencional, vão para o abatedouro da Korin, onde não pude entrar porque no dia da minha visita um grupo de rabinos estava matando as aves de acordo com os preceitos kosher. 

Já as poedeiras são criadas dentro da Korin, em galpões ventilados e não muito lotados. As galinhas ficam pelo chão e não têm dificuldade de caminhar (triste situação que vi no documentário Food, Inc). Elas têm casinhas para colocar os ovos, fazem “glu-glu” o tempo todo e olham curiosas para quem aparece. A luz fica ligada 15 horas por dia e infelizmente não passeiam lá fora. Entrei na fábrica de ração e a comida – uma mistura triturada de milho, soja e sais minerais — parece bem palatável, além de ser totalmente vegetariana, respeitando a característica da espécie.

Embora tenha frangos orgânicos, a maioria da produção da Korin é de “frango natural”. A diferença é que o milho e a soja da ração não são orgânicos. Outra classificação é a da “galinha caipira”, que pode ser orgânica ou não, e vive solta até ser abatida com cerca de 70 dias de vida.

Resumindo minhas impressões: as galinhas da Korin parecem viver em um colégio interno do tipo tradicional.

Saí de Ipeúna e fui direto para Saltinho, perto de Piracicaba, onde encontrei o jovem agrônomo Rogério Sakai, um dos sócios da Sabor e Cor. Com dois outros colegas de faculdade, ele abriu a empresa rural, que atualmente produz ovos e tomates requisitadíssimos por consumidores naturebas como eu e chefs de restaurantes bacanas. No momento da minha visita, eram 4 funcionários e 1.000 galinhas, mas o negócio está em plena expansão. O galpão onde moram as galinhas tem saídas e elas podem passear quando quiserem. Cheguei no final da tarde, momento em que se recolhem. Mas dezenas ainda estavam se divertindo no matinho ao lado. Rogério me contou que galinhas são territorialistas e montam turmas, sendo que as líderes ficam na posição mais alta do poleiro ou dos “predinhos de apartamento” onde colocam os ovos. Cada grupo usa exclusivamente uma das entradas e ocupa uma região específica do galpão, num esquema parecido com o das torcidas de futebol. Entramos. Elas se aproximaram e começaram a dar bicadinhas nos nossos sapatos. Muito fofas! A Sabor e Cor tem uma minifábrica de ração e utiliza soja e milho orgânicos de Foz do Iguaçu (uma das poucas regiões onde ainda não há contaminação de transgênicos). Por isso os ovos são orgânicos. Sem condições de instalar um abatedouro, o start-up do campo não cria aves de corte.

Saí de lá achando que as galinhas Sabor e Cor vivem num colégio interno do tipo liberal.

O engraçado é que, poucos dias depois do passeio, minha cunhada Lucilene, sabendo desses interesses galináceo-alternativos, me presenteou com duas dúzias de ovos vindos do vizinho de sua mãe, que mora em Itapetininga. Lá as galinhas são criadas no quintal, os pintinhos ficam com suas mães e o galo está sempre por perto. Tecnologia nenhuma e muita liberdade. As galinhas comem milho e ciscam à vontade, como sempre foi antes das pessoas se concentrarem nas grandes cidades e a produção de alimentos ser transferida para empresas.

No final, fiquei achando que essas eram as galinhas mais felizes, pois vivem soltas, num  pequeno grupo familiar.